terça-feira, 4 de março de 2008

E A HISTÓRIA REPETE-SE.... (uma análise do Boxe Francês em Toronto e não só)

... e quando olho para trás passaram dez anos. Dez anos de aprendizagem, de esforço, de derrotas e vitórias, de companheirismo e amizade, de novos conhecimentos, de dores e lesões. Dez anos, embora não seja uma amostragem tão significativa quanto outras pessoas terão (estou a referir-me em Portugal), é, no entanto, significativo e dá para tirar algumas ilações.

Já pensei nisto várias vezes, umas por ociosidade, mas mais frequentemente para conseguir fazer um balanço mental do que já vi e vivi a nível do boxe francês.

Lembro-me de que quando comecei era muito jovem, imaturo, não conhecia ninguém (além do Álvaro Terezo e do Luís Batalha) e sentia-me muito pequenino. Lembro-me de não achar graça nenhuma a essa coisa a que chamam savate; principalmente porque era frequentado por gajos grandes, com comportamentos um bocado ogrescos (se me permitem o neologismo com este adjectivo derivado de ogre), que só sabiam olhar para as miúdas que saíam da aula anterior, com a língua pendente e deixando escapar sons grotescos e gestos menos próprios (chegando mesmo a ser ordinários). Naturalmente as miúdas queixavam-se e sentiam-se intimidadas, daí que tenha sido implementada a medida de ser proíbido assistir às aulas.

Tanto o Álvaro insistiu comigo que acabei por experimentar o boxe francês. Desde aí, como já tenho afirmado mais do que uma vez, nunca mais deixei de fazer. Daí até hoje decorreram os tais dez anos, nos quais vi muita gente e reconheci alguns padrões estereotipados: o primeiro que identifiquei era o do “bruto” que queria aperfeiçoar os seus dotes de luta de rua. Mais tarde percebi que englobei pessoas erradamente nesta categoria. Eram normalmente grandes e/ou gordos e/ou pesados e que gostavam de lutar (o inglês “to spar”) e de enfardar nos outros, não obstante serem muitos quilos mais pesados. Contudo, esta foi só uma primeira observação e que pude ajustar mais tarde. Não que as coisas tivessem mudado, mas percebi que não havia ali maldade alguma. Estas pessoas gostavam de se digladiar com força mas sem crueldade. Porém, não era o meu espírito, até porque não sabia nada daquilo e a violência não me interessava.

A segunda categoria diz respeito a gente diversa (geralmente jovens do sexo masculino), que ouviram falar de um desporto chamado savate, através de um amigo ou de um amigo de um amigo e que não sabem bem o que é e vêm à experiência. Os mais resistentes aguentam cerca de um mês (o qual normalmente pagaram em avanço) e depois desistem. Ou não é aquilo que lhes agrada ou então julgam que podem fazer progressos incríveis num mês e como constatam que isso não acontece, desistem. Não têm perseverança suficiente.


Há ainda algumas miúdas que praticaram durante algum tempo, atraídas provavelmente por ser um desporto diferente e que têm uma grande componente física. Vêm geralmente acompanhadas de uma amiga/amigo. Salvo o caso paradigmático da Sara Flores, não conheço nenhuma que tenha aguentado muito tempo (mais de uma época entenda-se). Talvez quem tenha chegado mais próximo tenha sido a Susana Leal, da Praia das Maçãs. Mas as memórias começam a ficar menos vívidas com o passar do tempo e é possível que esteja a dizer disparates.

Mas há factores que contribuíram para isto, sendo o mais evidente o horário das aulas, facto ao qual o professor sempre foi alheio. O boxe francês sempre foi a modalidade que, na minha opinião, não aquecia nem arrefecia à mentalidade capitalista. Embora houvesse meia dúzia de gatos pingados que eram leais e constantes fosse em tempo de praia, futebol ou de chuva e frio (sim porque aí não neva e não faz frio de 20 graus negativos, o que faria se fizesse!! e penso agora cada vez mais nisso porque me deparo com essa situação). Portanto, o boxe francês era sempre a última aula da noite e, como se não bastasse, estava sujeita aos atrasos sucessivos de todas as aulas que vinham anteriormente. Tempos houve em que era comum começar com uma hora de atraso!! Não adiantava protestar. Era coisa que começámos a aceitar como natural após tanto tempo. O que não quer dizer que no início de cada ano lectivo (tal como as escolas, o ginásio fechava em Agosto), não houvesse “reformas” e ao início o atraso era significativamente menor, na ordem dos 10 a 15 minutos, mas ao longo do ano, fruto da incapacidade de manter uma aula com o seu tempo certo, isso acabava por prejudicar todas as seguintes e quem sofria mais eram os últimos.... nós, “os do boxe” como também éramos conhecidos.


É verdade que a competição é algo muito recente. Bem, pelo menos desde que comecei a praticar, pois sei que houve antes e bem mais do que pensava, porque felizmente há alguém incansável que vai publicando e documentando esses episódios dos primórdios do boxe francês em Portugal. Obrigado Pedro.


Logo, não havendo essa motivação, havia muita gente que também acabava por desistir. Penso nisso várias vezes. Eu gosto da competição (não que tenha muita experiência atenção!) mas eu era feliz sem isso também. Nunca me senti incompleto por praticar savate com os meus amigos apenas pelo prazer de praticar e, no entanto, considero-me um perfeccionista. Podem estranhar ter dito amigos agora quando parece que fui tão severo/crítico no início deste comentário, no qual tinha ideia ser sucinto. É o mal dos tipos de letras. Gostam de escrever e põem-se a falar e não se calam. Perdoem-me por isso. Voltando à questão. O início, como já expliquei, não acarreta um sentido de negatividade. Era apenas como eu via as coisas. É natural que num meio tão pequeno tenha feito bons amigos que muito estimo.


Por último (que me consiga lembrar), havia duas categorias diferentes e semelhantes ao mesmo tempo: os que buscavam resultados de um treino diferente e que é ao mesmo tempo aeróbio e anaeróbio e os que se inscreviam no período em que a escola começava, porque ainda tinham tempo, ou porque tinham sido alvo de campanhas publicitárias de fim de Verão.


Quanto à actualidade em Portugal, penso que não é necessário abordar esse aspecto. O panorama melhora, as pessoas estão ao corrente do que se passa e eu poupo-vos a alguns parágrafos.


Vou passar então a Toronto. Está quase a fazer um ano que cá estou (em Abril) e já dá para avaliar alguns aspectos. Vamos por partes. Número de praticantes (claro que fruto do meio de onde vim, a minha análise tende a ser comparada): eu pensava que Portugal tinha poucos, mas olhem que aqui é uma miséria. Não devo ter chegado a conhecer mais de 20 praticantes diferentes (atenção que me estou a referir a Toronto e não ao Canadá, pois em Montreal está um núcleo mais forte, fruto também de haver ginásio universitário que capta assim os estudantes). E por estranho que pareça, há geralmente mais mulheres do que homens, o que acaba por ser tramado por um lado, embora bom por outro (porque é preciso ter mais cuidado e ser mais rápido na hora de lutar). Noto que o boxe francês aqui é ainda mais desconhecido do que em Portugal. O panorama é ainda mais desolado e as pessoas menos motivadas. O desporto rei aqui é o boxe tailandês. Bom para eles. Chamem-me preconceituoso mas não vejo técnica naquilo. Só oiço gritos, gajos a usar o corpo todo em forma de alavanca para obter força nos pontapés e técnica nenhuma. Nada que me diga respeito. São abordagens e mentalidades diferentes (nota: normalmente estes tipos/tipas podem reconhecer-se pelas pernas cheias de nódoas negras).


Aqui em Toronto, mesmo assim, o panorama registou uma evolução desde que cheguei. Mas, como entenderão, é sol de pouca dura. Passámos de duas para quatro aulas semanais (nas quais eu participo dando às 3ªs feiras), motivado pela vinda da vice-campeã mundial de combat -56kg, Anne-Laure Bouvier de Candia, de Montreal para Toronto. Ela assegura a outra aula extra que passámos a ter. Mesmo com o aumento de publicidade, as novas entradas teimam em não se registar. O boxe francês mal se mantém acima da linha de água em termos de despesas de aluguer de espaço físico.


A corrente situação faz-me lembrar as aulas no SPALD no período natalício, onde mais do que uma vez, chegámos a ser quatro e mesmo três pessoas: eu, o Álvaro e o Paulo “Arrifaman”.

Ontem, e para não variar muito a ementa, era a professora, a Gaelle Villette, a Janesse Leung, também professora e presidente da Federação Canadiana, a Anne-Laure, o Matthew, o rapazinho mais aplicado que temos, e eu.


Ele é o mais aplicado mas depois há coisas que não entendo. A sua dedicação começa a dar frutos e ele começa a evidenciar alguma técnica. Porém, este mês haverá graduações e... ó surpresa, ele não quer ir. Lembro-me uma vez de ter cometido semelhante erro. Não eram graduações mas foi um estágio. Como tinha pouco tempo de treino, achei que não valia a pena deslocar-me ao Porto. Hoje arrependo-me de não ter treinado com o Sylla. Enfim, é passado.


Mas o panorama mais desolador ainda está para vir e vou traçá-lo num instante: A Gaelle é francesa. Está a acabar o mestrado aqui. Em Julho regressa definitivamente à Europa. Menos uma. A Janesse quer ir viver para a Austrália onde tem família. Menos duas. A Anne-Laure teve ofertas profissionais que a conduzirão a outras paragens. Menos três. Sobra quem para dar aulas, eu? O problema não estaria aí. O problema reside nos alunos (ir)regulares e (in)existentes. É impensável conceber três alunos, sendo que apenas um deles é mais ou menos regular. Os outros têm trabalho, claro, cada um tem a sua vida, mas no fundo, é, provavelmente a morte do boxe francês em Toronto e isso entristece-me.


Ou se dá um grande milagre ou então haverá, com sorte, mais um ano de savate, numa metrópole com mais de três milhões de habitantes.

1 comentário:

Pedro da Glória disse...

Bela análise. Parabéns pelo texto.